quinta-feira, 8 de maio de 2008

O debate é necessário e urgente...



Transcrevo abaixo, como mais um contributo para a reflexão acerca da recente crise/carestia de cereais no mundo, o excelente artigo, pedagógico até, de Ignacio Ramonet no Le Monde Diplomatique:
"Motins da fome

06-Mai-2008
Ignacio Ramonet - Le Monde Diplomatique

Já são mais de 37 os países em que a insegurança alimentar provocou protestos. Os primeiros tiveram lugar no México o ano passado pelo aumento exagerado do preço do milho. Também em Myanmar (antiga Birmânia) a insurrecção dos monges, em setembro de 2007, começou por manifestações de descontentamento contra a carestia dos alimentos. Nas últimas semanas temos assistido a tumultos em diversas cidades do Egipto, Marrocos, Haiti, Filipinas, Indonésia, Paquistão, Bangladesh, Malásia e sobre toda a África Ocidental (Senegal, Costa do Marfim, Camarões e Burkina Faso).
São rebeliões dos mais pobres e limitadas ao âmbito urbano. O campesinato, por agora, não se amotinou, e as classes médias não se juntaram aos protestos. Mas o farão se os preços da comida continuam a aumentar. E estes vão subir pois o parodoxal desta situação é que nunca a produção agrícola foi tão abundante. Ou seja, a carestia actual não se deve à penúria mas a outros factores. Haverá pois novos motins pela fome e durante um largo período. Os quais se traduzirão em novas ondas de emigração. Pois a comida representa já 75% dos rendimentos das famílias dos países pobres, contra 15% dos países ricos.
Para prevenir os próximos protestos alguns governos multiplicaram as medidas: o Casaquistão suspendeu todas as suas exportações de trigo, a Indonésia decidiu limitar as de arroz, as Filipinas declararam guerra aos especuladores e a Argentina, Vietname e Rússia restringiram as suas vendas de trigo, arroz e soja ao exterior.
As os preços continuam altos. Desde março de 2007 o valor dos produtos lácteos subiu uns 80%, o da soja uns 87% e do trigo uns 130%. O Banco Mundial, que não está isento de responsabilidade, afirma que estes aumentos empurraram para o abismo da miséria mais de 100 milhões de habitantes dos países pobres. E o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola estima que por cada aumentos de 1% do custo dos alimentos de base, 16 milhões de pessoas se vêm submersas na insegurança alimentar. O que significa que 1.200 milhões de seres humanos poderão padecer de fome crónica de hoje a 2025.
Porque aumentam os preços da comida? Essencialmente por 4 razões. Primeiro porque a elevação do nível de vida de países como a China, Índia e Brasil modificaram os hábitos alimentares. Consome-se mais carne, logo há que criar mais gado. O qual consome uma parte importante das colheitas de cereais. As novas classes médias comem mais vezes por semana carne de galinha e vaca, e estes animais alimentam-se à base de soja e milho. Como a população mundial vai continuar a crescer e o poder aquisitivo de muitas pessoas vai continuar a crescer, irá produzir-se uma alteração estrutural. O ecologista Lester Brown anuncia "quandos os chineses comerem tanta carne como os norte-americanos, absorverão 50% dos cereais do mundo" (1).
Segundo porque uma parte da produção alimentar (cana de açúcar, girassol, colza, trigo) destina-se agora à produção de agrocombustíveis. As terras e os cultivos que se dedicam a essa actividade já não dão alimentos aos seres humanos. E isto também se vai agravar. A União Europeia decidiu que 10% do total de combustíveis consumidos até 2020 deve ser agrocombustíveis. E o presidente dos EUA, George W. Bush, pede que sejam 15% até 2017. A tal ponto que países com déficit alimentar como o Senegal ou Indonésia resolveram produzir agrocombustíveis em vez de alimentos. Responsável por parte desta situação, o Fundo Monetário Internacional, afirma que entre a 20 a 50% da colheitas mundiais de milho e colza já estão a ser desviadas para elaborar agrocombustíveis.
Terceiro porque o estalo dos preços do petróleo - acima dos 115 dólares o barril - encarece o custo dos transportes, em particular da circulação dos produtos agrícolas e, assim, do valor dos alimentos.
Quarto por efeito da especulação financeira. Fugindo da crise dos subprime, os fundos de investimento apostam agora nos produtos alimentares: soja, trigo, arroz, milho. São valores refúgio. Os fundos compram e armazenam apostando pela alta dos preços. Como sempre, os novos especuladores não dúvidam que vão enriquecer com a fome que eles mesmos ajudam a criar. Estima-se que a especulação está a causar 10% da subida dos alimentos.
Os países ricos comprometem-se há tempo a consagrar 0,7% do seu PIB ao apoio aos países pobres. Muito poucos cumpriram essa promessa. No seu conjunto, a ajuda no ano passado diminuiu uns 8,4%. E a assistência à agricultura dos Estados do Sul baixou, nos últimos 20 anos, uns 50%! Como estranhar a proliferação dos motins? Porque se espera para criar, finalmente, um grande Fundo Mundial contra a Fome? "

Notas:(1) Capital , Paris, março 2006."


Também estimulantes as reflexões de José Manuel Pureza publicadas pelo Público, na sua edição online. Deixo aqui um aperitivo:

“Uma leitura estritamente técnica esconde as razões de natureza política profunda. O que está a acontecer é o impacto no sector agrícola e alimentar daquilo que é a realidade ‘normal’ do capitalismo financeiro”

“Esta é a factura que os países mais pobres estão a pagar pelas políticas que o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial lhes impuseram, que passou por desmantelar a pequena e média agricultura de subsistência”


Na realidade, o presente debate é relevante de uma perspectiva puramente económica e social, mas é sobretudo relevante, e isso é bem notado por José Manuel Pureza, de uma perspectiva política. De facto, as alterações estruturais a que a presente carestia de cereiais pode levar, e não só nos países sub-desenvolvidos, é de tal monta, que podem ser expectáveis mudanças de paradigma, dificilmente pacíficas, quer ao nível das políticas de desenvolvimento económico, quer ao nível dos equilíbrios regionais e demográficos, quer ainda ao nível de um futuro espaço de partilha e comércio entre as nações do mundo. A história muito recente do espaço Ibero-Americano é, a este respeito, deveras elucidativa.

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